Uma criança felina corre pelos campos verdes. Com olhos brilhantes, olhos espertos, ela observa a natureza a sua volta e, ao mesmo tempo, rodopia com os braços abertos, até perder o equilíbrio e deixar-se cair sobre a grama macia. Ela coloca a mão sobre os olhos protegendo-os do sol “Que calor gostoso!” e vira-se de lado. “O que é isso?” Um brilho azul desperta a sua curiosidade. Um sorriso espontâneo forma-se em seu rosto enquanto a pequena se aproxima da borboleta e tenta tocá-la. O delicado ser colorido bate suas asas e voa alto, deixando Keinara maravilhada. Ela se concentra, estica sua pequena mão em direção a borboleta e suavemente a puxa de volta, até que ela pousa em seu dedo indicador. Assim se inicia a manifestação telecinética da pequena criança, que não tem ideia de como isso mudará a sua vida para sempre.
Ela mora em um vilarejo simples de pessoas humildes que ganham a vida como caçadores. Sua casa de madeira fica firme em uma árvore frondosa, cheiro de mato descreve bem o ambiente. Já é noite, todos dormem tranquilamente, a pequena criança em sua cama e os seus pais abraçados na cama ao lado. Era para ser uma noite normal como tantas outras, se não fosse pelo evento anterior com a borboleta. O silêncio é cortado por um estrondoso vento forte, as folhas das árvores agitam-se violentamente, o som é semelhante ao de um helicóptero, algo desconhecido para eles.
Os pais da jovem acordam assustados, sua mãe rapidamente se levanta e a pega no colo apertando-a, enquanto isso, o pai da jovem vai até à janela verificar: “Será que é uma nova tempestade? Querida, ao meu sinal vamos direto para a caverna!” a esposa consente acenando levemente com a cabeça.
Por ser uma terra tropical, fortes tempestades são muito comuns. Os moradores, como bons felinos, sentem-se mais seguros e confortáveis morando em árvores, porém, em dias de tempestade, não é um local seguro de se estar. Por isso, eles constroem suas casas em árvores próximas a cavernas, assim em casos de emergência podem rapidamente buscar um abrigo mais seguro. Mas infelizmente, a situação que teriam de lidar estava muito além de sua capacidade defensiva, nenhuma caverna poderia protegê-los.
Óregon, conquistador de mundos, planeta legislador, juiz e executor. Este é o antagonista desta família e de tantas outras.
Enquanto os pais de Keinara descem as escadas, uma grande nave paira no céu. Eles correm para dentro da caverna e a mulher começa a chorar: “Amor, o que é isso? Serão os deuses? O que eles querem de nós? Estou com medo!” o marido abraça a esposa tentando acalmá-la “Não sei meu bem, não sei…”
Os três se abraçam dentro da caverna, uma luz forte revela a silhueta de uma pessoa. Mesmo com medo, o pai se posiciona para proteger a família. Com pelos eriçados ele expõe as suas garras, dentes e rosna: “Quem é você, e o que você quer?!” Contudo, não há resposta, o intruso continua calado observando o gatinho acuado. Tudo é muito obscuro e incerto. O homem não se intimida, prossegue andando em direção à família e falando em um idioma desconhecido para eles: “Não fique no meu caminho! Não quero machucá-lo, mas o farei se for necessário. Algo maior do que nós está aqui hoje. Vocês serão doutrinados em uma nova cultura de ordem e paz, toda a selvageria deixará de existir e este planeta florescerá como uma nova terra próspera e justa.”
Confuso, o pai balança a cabeça em negação: “Eu não entendo o que você diz, mas é melhor você voltar de onde veio! Eu não vou permitir que machuque a minha família.” Ainda assim, o estranho continua caminhando calmamente. Percebendo que aquela pessoa não iria parar, o pai avança contra ele. O invasor estica a mão e paralisa o felino, deixando-o como que congelado, em plena ação. Depois o ergue do chão e o faz flutuar: “Eu disse para não ficar no meu caminho! Agora terei de machucá-lo.” O intruso move rapidamente seu braço para à direita, lançando o felino em direção a parede da caverna, fazendo-o bater com a cabeça e desmaiar. A esposa grita: “Não!” e olha com pavor para o estranho: “O que você fez? Por que você está aqui? O que você quer?!” lágrimas de medo, tristeza e dor escorrem em seu rosto.
Ele para em frente as duas felinas e encara a mãe nos olhos: “Apenas me entregue a pequena e eu a deixarei em paz.” A mulher não compreende, sentindo-se ameaçada, com a criança em seus braços ela se levanta e começa a correr. Enquanto corre, os seus pés saem do chão, seu corpo flutua. Certamente não há mais o que fazer, não há como lutar, sobra-lhe apenas a despedida: “Minha filha, minha criança, mamãe te ama muito.” O invasor usa sua força cinética para abrir os braços da mãe enquanto ela grita, após separar a mãe de sua filha ele a joga contra a parede fazendo-a desmaiar.
A criança permanece flutuando e chorando, de braços estendidos ela grita: “Mamãe!” O homem a olha com ternura e a puxa suavemente até tê-la diante de si: “Você não sabe ainda pequena, mas você é uma joia bruta, presente desta terra. Em breve, você será lapidada por Óregon e será responsável por grandes feitos.” Dos olhos do homem começa a brilhar uma luz rosa neon, isso faz com que a criança se acalme para depois cair em um sono profundo. Ele a pega nos braços e a cobre com o seu manto. Eis o troféu de sua incursão! Ao sair da caverna ele dá um longo suspiro: “Mais um tributo recuperado, assim como tem de ser.”
A pequena Keinara acorda em uma cama grande e macia. Nas paredes, desenhos de estrelas com quadros suavemente coloridos. Ao seu lado um gatinho de pelúcia. Ela se senta na cama e fica olhando admirada, enquanto isso, a porta se abre e o mesmo homem que a havia capturado entra a passos leves: “Bom dia jovem” sua voz é maternal “Como está se sentindo?” Keinara o observa curiosa, não se lembra dele, na verdade, ela tem a sensação de não se lembrar de muita coisa. É como se algo importante tivesse sido arrancado de suas memórias. O sentimento é de vazio, mas o que está faltando? O que lhe foi tomado? Ela não saberia dizer.
“O despertar é sempre assim, minha pequena. Tudo está confuso, mas vim aqui para ajudá-la a entender.” O homem se senta na cama ao lado da menina e segura em suas mãos: “Você se chama Keinara, seu planeta natal é Nahü. Sentimos a sua presença como iniciada e a trouxemos para cá. Você tem habilidades incríveis que podem salvar a vida de muitas pessoas, por isso será treinada. Vamos conhecer melhor o seu novo lar?” Ele puxa a mãozinha da jovem delicadamente, ela se levanta e o segue. Por algum motivo aquele homem passa muita confiança, talvez sejam os seus olhos bondosos ou sua voz gentil.
Saindo do quarto, eles se deparam com um grande corredor bem iluminado, cheio de portas fechadas. No fim do corredor eles encontram uma sala maior onde uma figura impressionante os espera. É uma mulher coruja, ela está de costas, sua plumagem é bege com pequenas manchas marrons. Ao sentir a presença deles, ela se vira delicadamente em direção a jovem e a encara com ternura.
Sua voz é macia, assim como sua plumagem: “Vejo que acordou, pequena criança. Bem-vinda a sua nova casa!” O homem se afasta das duas e se comunica mentalmente: “Agora preciso ir, deixo a pequena em suas mãos.” A mulher acena com a cabeça e o homem desaparece rapidamente.
A anciã dobra os joelhos e tenta ficar na mesma altura da jovem: “Venha, se aproxime, quero te dar um abraço de boas-vindas.” A criança se aproxima da anciã que a abraça carinhosamente, cobrindo-a completamente sob suas asas. Os olhos da anciã são brancos e cegos, mesmo assim ela pode saber a altura e direção de outra pessoa, pois assim como outros legionários, ela é sensível à energia dos seres vivos. Mais que isso, com apenas um toque ela pode acessar as memórias de outra pessoa, mesmo as que foram bloqueadas, e entender todo o contexto de vida de um indivíduo. Isso é tanto útil, como um fardo para ela.
Keinara sente-se segura sob as plumagens, e a anciã aproveita o momento para acessar as suas memórias. A primeira memória que surge é a de seus pais sorrindo enquanto a abraçam, depois um campo verde imensamente lindo. A anciã sente o seu coração se aquecer por um instante, que visão alegre e prazerosa, mas logo tudo fica escuro e se apresentam os acontecimentos de quando a jovem foi arrancada de seus pais. Uma lágrima escorre dos olhos da anciã “Quanta dor, quanto medo… Será que sempre vai ser assim?”
Depois de alguns minutos a anciã abre vagarosamente suas asas e solta a pequena criança: “Venha, vamos conhecer uma pessoa”. As duas seguem por outro corredor de mãos dadas, param em frente a uma porta. A anciã se comunica mentalmente com alguém: “Olá Beta, sei que sente a nossa presença. Trouxe-lhe uma aprendiz.” A porta se abre e uma humana de pele preta como a noite e olhos dourados como a lua as recebe com um grande sorriso. Seus cabelos crespos estão presos em um largo coque: “Que criança linda! Estou tão feliz em conhecê-la” abaixa-se na altura da menina: “Garanto que seremos grandes amigas!” A anciã sorri satisfeita enquanto pensa “Eu gostaria que estas duas se tornassem amigas em uma situação diferente, mas é assim que tem de ser”. Além de acessar as memórias, a anciã tem a habilidade de conectar pessoas, ela sabe exatamente quais são as personalidades que se complementam. Em um toque ela descobre muito mais do que uma vida, ela descobre conexões que podem ser formadas para fortalecer pessoas.
A partir deste momento, Keinara passa a ser rigorosamente treinada por Beta, uma mestra exigente, porém gentil. Sempre espera mais de sua aluna, não deixando de elogiar cada avanço, por mínimo que seja. Com o tempo elas se tornam como mãe e filha, uma conexão verdadeira que beneficia ambas.
Finalmente Keinara completa vinte anos e está pronta para ser uma legionária. Seus feitos são grandes! Mesmo jovem recebe missões importantes como a de liderar a captura de assassinos, contrabandistas e líderes de seitas perigosas. Ela sente-se feliz ajudando tantas pessoas, mas, por outro lado… É como se sua vida tivesse sido roubada dela. Estar sempre tão ocupada é estressante! A necessidade de atingir as expectativas de outros é dolorosa. E por diversas vezes ela é tomada por um desânimo imenso. Mas o vazio que sente em sua mente e coração, a sensação de que algo lhe tinha sido arrancado, a fazia ter medo de perder as coisas importantes de agora. Esse sentimento a motiva a dar tudo de si, mesmo sob muita pressão.
No dia em que sua mestra morreu em batalha contra os rebeldes do planeta Inicial, a jovem experimentou uma dor profunda. Após quinze dias de luto ela decidiu voltar ao trabalho “Isso é o que minha mestra esperaria de mim. Legionários morrem em batalha, preciso aceitar este fato. Preciso ser mais forte… preciso manter acesa a memória da minha mestra! Preciso me esforçar um pouco mais a cada dia, proteger as pessoas que amo.” Uma lembrança boa a faz sonhar acordada. No dia de sua formatura, após representar os formandos com um discurso, seu amigo Zirde, impulsivamente, corre e a abraça: “Parabéns! Que discurso emocionante!” Ela sorri com a recordação, aquele abraço foi algo muito especial. Quando Zirde se dá conta de que havia extravasado, ele fica envergonhado e logo a solta. Keinara também fica toda sem graça. Para piorar um pouco as coisas, Zany como sempre, começa a rir e dar leves tapinhas no ombro de Zirde: “Há, há! O próximo discurso vai ser do noivo, hein?” Deixando-os ainda mais embaraçados. Keinara fica muito brava e estica o dedo indicador na cara de Zany: “Não vai ter noivo nenhum não, deixa de ser boba!” Zirde fica discretamente desapontado. Vindo na direção deles, Tina tenta segurar o riso: “Parabéns, Keinara. Fomos muito bem representados em seu discurso.” Keinara agradece: “Muito obrigada Tina” depois se vira para Zany: “Tá vendo! Por que você não consegue ser uma amiga normal como a Tina?” Zany dá de ombros e fica resmungando: “Blá, blá, blá Tina.” Keinara sorri, depois suspira profundamente “Não posso perdê-los, preciso protegê-los com o melhor de mim!”
Assim foi forjada Keinara, personagem do livro Light Novel Rebelião. Uma mulher forte, determinada e cheia de princípios. Muitas vezes ela se sente exausta por carregar tantas responsabilidades, mas o seu amor é maior do que a sua dor.
– Fim do conto Keinara
Quando criança, Suna vivia em seu planeta natal Nahü, onde todos os habitantes são meio homens, meio felinos. Suas casas eram feitas de madeira sobre as árvores, um lugar repleto de verde, montanhas e vales.
Famosos em Nahü eram os grandes e poderosos caçadores. Suas habilidades felinas aguçadas, experiência e exaustivo treinamento, permitiam-lhes capturar animais grandes e assim alimentar toda a aldeia. Visto que a vida era mantida pela caça, desde cedo as crianças eram treinadas a se tornarem futuros caçadores com foco em desenvolver ao máximo suas habilidades.
Uma competição acirrada entre as famílias era muito comum. Todos disputavam o posto de Nahamma, ou família chefe. Se tornar a próxima família Nahamma garantiria muitos privilégios especiais.
As escolas eram focadas em ensinar técnicas de combate e caça. A próxima geração deveria ser capaz de defender o território e garantir alimento mesmo em épocas de frio e geada.
Suna era uma jovem extremamente atrapalhada, aquele tipo de pessoa que tropeça nos próprios pés (ou patas). Por este motivo ela se tornou uma piada entre os colegas de classe e uma grande vergonha para os seus pais. Sendo assim, a vida de Suna tornou-se muito solitária. Em casa não existia afeto. Seus pais a olhavam friamente, faziam questão de demonstrar todo o desgosto que sentiam por ela. Era como se a pequena menina fizesse por mal, como se ela tivesse culpa por ser tão atrapalhada e azarada.
Todos os dias após as aulas, Suna entrava em casa de cabeça baixa. Sua mãe deixava uma tigela com comida sobre a mesa, mas ninguém se sentava à mesa com ela. Comia sozinha e ia para o quarto aos suspiros. O seu quarto era um pequeno mundo alternativo onde com seus bichinhos de pelúcia, Suna inventava aventuras nas quais ela era a gran chefe, salvadora de todos. Tudo era perfeito!
“Ao menos uma vez na vida eu poderia ser assim.” Seus olhos vez por outra pairavam soltos e brilhantes pelas paredes do quarto, imaginando como seria na vida real se fosse igual à vida imaginária.
Além de todo o desamor por parte da família, a jovem enfrenta perseguição e rejeição dos colegas de turma. Chegou a um ponto que ela achava estranho o dia que ninguém a incomodava.
Mas nem tudo era amargo e sem graça. Uma colega de turma chamada Tina, que era meio humana, meio tigresa, seja por dó, compaixão, sabe-se lá qual outro motivo poderia ser, decidiu aproximar-se dela. As duas se tornaram grandes amigas. Todos os dias elas corriam pela floresta e repassavam as aulas da manhã. Sentavam juntas próximo a um penhasco para conversar e admirar o pôr do sol esplêndido que pulsava e se escondia nas montanhas. Tina estava sempre cheia de muitas ideias e teorias, gostava de filosofar. Coisas que Suna não entendia de nada, porém, o sorriso e a empolgação de Tina a deixava muito feliz.
O coração de Suna ficou cheio de um calor gostoso, o mesmo calor que ela sentia no colo de sua mãe quando ainda era bem pequena. Quando não sabiam o quão sem futuro ela seria: “Uma aluna excepcional! Sem sombra de dúvidas.”
Era assim que os professores viam Tina, como a futura gran caçadora chefe. Tinham altas expectativas sobre a garota, que além de habilidosa na caça era incrível nas lutas. Uma nova estrela da manhã estava para surgir.
Mas a vida é injusta, fatídica. Como poderia a luz e a escuridão dividir o mesmo espaço sem incitar o caos? Apenas um incidente e tudo outrora planejado, esperado, se desfez.
Só mais um dia, como tantos outros. Suna e Tina apreciando o pôr do sol. Tina filosofando, Suna contemplando a inteligência, audácia e empolgação daquela que teria um futuro muito melhor do que o seu. Uma cena bonita de se ver, se este não fosse o início de uma tormenta.
“Aquela ali não é a Tina?” grita e aponta um menino meio felino de pelagem vermelha.
“Sim, é a Tina. Como sempre com aquele trapo que carrega para todo lado” conclui outro menino com aspecto de leão.
Tina ao ouvir isso se levanta de imediato. Seus os olhos estavam cheios de ira, seus dentes rangiam, um rugido soou: “O que vocês disseram?! Repita se forem homens!”
O menino com aspecto de leão gritou: “Você nunca será a gran chefe! Não importa o quanto seja boa. Você carrega uma aberração com você. Ninguém nunca vai te respeitar! Eu não vou te respeitar!”
“E quem disse que eu quero o seu respeito?!” A tigresa avançou sobre o leão, os olhos flamejantes, dentes à mostra, uma verdadeira fera indomável. O menino felino de pelos vermelhos correu e conseguiu fugir. Já o garoto meio leão teve tufos de pelos arrancados, alguns rasgos no braço e uma baita mordida no ombro. Com esta última, soltou um gemido profundamente doloroso: “Me solta sua louca!” Foi quando Tina finalmente o soltou.
Suna assistiu a tudo calada e pensativa. Sabia que de alguma forma aquelas palavras eram verdadeiras. Repetia em sua cabeça: “Aquele trapo que carrega para todo lado. Uma aberração com você.” Trapo, aberração. Palavras fortes para se referir a alguém. Mas o pior de tudo é quando esse alguém concorda com elas.
Verdade… Suna sempre estava ao lado, ou melhor, sempre estava na sombra de Tina. No fundo, sentia-se como a lama que suja os pés de uma deusa. Era um sacrilégio!
Em um futuro não tão distante, Tina poderia ser a gran caçadora chefe. Teria a casa mais bela da aldeia, quantos machos desejasse, fartura de comida, festas especiais todas as primaveras, respeito e admiração: “Como isso será possível carregando um lixo como eu?” Pensando em tudo isso, angustiada, correu para longe.
O menino leão se levantou com dificuldade, pois sentia arder em suas feridas que sangravam. Ele se afastava devagar, mas se mantinha de frente com a tigresa. Os olhos arregalados de medo, controlando a vontade de chorar. Não existiam lágrimas nos olhos de Tina, mesmo com um belo arranhão na perna. Estava anestesiada de raiva, nenhuma dor poderia alcançá-la. Suas palavras foram incisivas, metálicas: “De pessoas como você eu não quero respeito. Quero medo! Me tema, e suma daqui!”
Entendendo ser a hora para desaparecer, o garoto leão correu como se não houvesse amanhã. Finalizando sua luta por temor, Tina virou-se em direção a Suna, que já não estava mais lá. “Onde será que ela foi?”
Suna voltou para o seu pequeno quarto, desabou sobre a sua cama e ficou olhando para o teto. Repetia em voz baixa, num sussurro contínuo, quase como uma oração: “sacrilégio… sacrilégio….” Naquele momento uma decisão foi tomada. Certamente não foi uma boa decisão.
No dia seguinte, Suna começou a comportar-se diferente. Quando Tina tentava falar com ela, Suna apenas a ignorava e fingia não ouvir. Repetia em sua mente: “Sacrilégio, sacrilégio… Os deuses me recompensarão.”
Assim perdurou por mais de uma semana. Tina só olhava Suna de longe, não tinha mais coragem de se aproximar. No fundo, sentia um pouco de raiva e indignação, mas, ao mesmo tempo, queria entender o que havia acontecido, por que isso?
Em um fim de tarde, Suna resolveu ir para o ponto de encontro onde costumava admirar o pôr do sol acompanhada de Tina. Ela estava evitando o lugar, seja pelas lembranças que traziam saudades ou pelo medo de encontrar a pessoa da qual estava fugindo. Lágrimas começam a descer de seus olhos que foram rapidamente absorvidas por sua pelagem.
“Agora não é hora de chorar. Preciso me tornar forte! Preciso merecer a amizade da Tina. Preciso calar a todos.” Suna já estava treinando sozinha há alguns dias e parecia estar melhorando. Sem a pressão dos olhos dos professores e colegas de turma, a coisa fluía melhor. Claro que o treinamento com Tina também ajudou muito.
Um cheiro forte. Era cheiro de comida. Suna fechou os olhos e concentrou-se no odor: “Um animal, um cervo macho, está próximo.” Andou cuidadosamente entre os arbustos até avistar o cervo. Fixou os olhos em sua vítima, ergueu as orelhas com atenção. Todos os seus sentidos estavam concentrados naquela refeição. Começou a ouvir os batimentos do animal. Finalmente os seus sentidos felinos começaram a funcionar, ou talvez, esta tenha sido a primeira vez que se concentrou em algo.
Quando estava pronta para dar o bote, ela sentiu outra presença. Queria saber de quem se tratava, parecia ser um cheiro familiar. Agora os seus sentidos estavam tão aguçados que todos os cheiros e sons se misturaram. Isso lhe causou uma imensa confusão mental.
Um vulto apareceu na sua frente e instintivamente Suna esticou o braço em sinal de afastamento. O que a pequena não poderia imaginar era que o vulto se tratava de Tina. A jovem tigresa tinha finalmente juntado coragem para conversar com quem considerava ser sua amiga. Mas este foi um momento infeliz.
Ao esticar o braço para frente, Suna disparou uma rajada energética que lançou Tina em direção ao penhasco. Tina balançava os braços no ar buscando algo em que pudesse se segurar, mas nada estava próximo o suficiente de suas patas. Com os olhos arregalados de espanto, a tigresa formou nos lábios um: “Por quê?”
“TINAAAA!” Suna correu em direção ao penhasco horrorizada, tinha lágrimas em seus olhos: “Mas como isso aconteceu? O que foi que eu fiz?” Olhava para as mãos, amedrontada, trêmula. Não sabia o como, e nem o porquê aquilo estava acontecendo. Nunca ouvira falar de alguém que conseguisse fazer isso: “E por que logo agora? Por que comigo?”
Agora sim, tornou-se um fato consumado. Ela era uma maldição em pessoa. Uma assassina. Entre soluços e lágrimas: “A Tina, a Tina… A única que… A única amiga que eu… Eu matei… Eu matei a Tina….”
Suna trancou-se em seu quarto e por três dias não comeu nem bebeu. Ficava encolhida no canto da parede. Não havia mais lágrimas para chorar, toda água secou-se. Seus olhos não tinham brilho algum. É como se a menina tivesse morrido naquele penhasco junto com a tigresa.
No final do terceiro dia um grande alvoroço começou na aldeia. Além do desaparecimento de Tina que deixou todos desconfiados, fortes ventos no céu noturno pareciam anunciar uma tempestade. Quando os aldeões saíram para olhar, uma imensa nave espacial pairava no céu acima deles. Nunca haviam visto algo igual. Não conheciam tecnologia nenhuma, eram arcaicos. Logo imaginaram tratar-se dos deuses que decidiram premiar ou destruir a sua civilização.
A nave pousou e a porta se abriu, saíram dela, criaturas estranhas, eram de espécies muito diferentes da deles. Todos carregavam armas e andavam em formação. Por último saiu um homem encapuzado que andou diretamente até a árvore onde Suna morava. Flexionou os joelhos e deu um salto fenomenal, pousando de frente a casa de Suna. Empurrou a porta, passou pelos pais de Suna como se não existissem e seguiu direto para o quarto da pequena. Ao abrir a porta do quarto sentiu o cheiro de pavor e tristeza: “Que lástima! Que dor!” falou consigo mesmo.
A menina encontrava-se encolhida, imóvel. Ela não havia sequer notado a presença daquele homem estranho. Ele fez um estalo com a boca que marcava a sua indignação: “Desprezíveis! Como podem tratar uma pessoa de sua própria espécie desta forma? Essa criança… Ela é só uma criança.”
“Pequena…” Disse o homem suavemente enquanto tocava delicadamente o ombro da menina. Lentamente ela ergueu a cabeça, olhou sem de fato ver.
O desconhecido segurou o rosto de Suna de frente ao rosto dele. Seus olhos começaram a emitir uma luz rosa neon intensa. A luz penetrava nos olhos da jovem e iam lentamente desmanchando a amargura da vida. De pouco em pouco os olhos da menina ganharam brilho e a jovem deu um pequeno soluço. Era de alívio. Imediatamente desfaleceu nos braços do homem.
O estranho a segurou firmemente nos braços, apertando-a contra o peito. Ele possuía um olhar bondoso e terno: “Minha criança, os seus dias de sofrimento terminaram aqui. Você terá uma nova vida em Óregon, será o seu novo lar. Assim como tem de ser.” Os pais da menina não reagiram. Ninguém reagiu. O homem entrou na nave carregando Suna. Os outros estranhos do exército continuaram em terra firme. Na porta da nave outro homem aguardava, ele era alto com pele azul e olhos amarelos: “Pobre pequena. Garanto ao senhor que estas feras serão doutrinadas! Em breve obedecerão ao poder maior da paz e harmonia. Assim como tem de ser.”
Chegando a Óregon Suna acordou, mas não tinha recordações de seu passado. Não se lembrava de seus pais, nem de seus colegas de classe, nem dos professores. Até mesmo Tina desapareceu totalmente de suas lembranças. Agora era apenas Óregon e os legionários. Eles eram a sua família, aquele era o seu lar, desde sempre e para sempre. Assim como tem de ser.
Mas… Por algum motivo, Suna não saberia explicar. O pôr do sol de qualquer sistema solar a fazia sentir um calor reconfortante, uma garantia de que ela nunca estava sozinha.
Fim do conto Suna
Assim como todo legionário, Hounen já foi uma criança, e muito esperta por sinal. Seus olhos estavam sempre bem abertos a observar tudo. Com menos de um ano já sabia falar, ele era a alegria de sua mãe, Mashira. O colo materno é muito bom; por mais insano que pareça ser, é o lugar onde nos sentimos mais protegidos. Claro, quando possuímos uma mãe bondosa como a de Hounen.
O planeta de Hounen é bem próspero, assim como os outros planetas conquistados pela Ordem dos Sete. Tudo flui em perfeita harmonia, uma paz e tranquilidade quase inabaláveis. As leis impostas pela Ordem dos Sete eram rígidas e bem respeitadas, poucos se atreviam a contrariá-las, pois as penas para os rebeldes eram duras. Mas nem tudo eram flores. Existiam alguns que discordavam da forma em que eram governados. Mashira não sabia, mas acabaria se tornando uma desafortunada pela Ordem dos Sete.
Em uma bela manhã como tantas outras, Mashira cuidava de seus afazeres na cozinha enquanto Hounen brincava na sala. O pequeno começou a rir muito, estava empolgado. Qual é a mãe que não gosta de ouvir o sorriso do filho? Mashira sorria: “Esse menino, todo dia é uma aventura. Como pode se divertir tanto assim sozinho?”
O pequeno aparece na porta da cozinha com olhos radiantes: “Mamãe, vem ver o que eu aprendi, vem!” ele insistia puxando a mãe pela blusa. Mashira seca as mãos no pano de prato e segue o filho até a sala para ver qual era o novo truque que ele tinha aprendido. Porém, ela foi tomada de espanto e uma amargura indescritível.
Hounen se sentou no chão, olhando alegre em direção a um copo de água e com um pequeno aceno de mão fez com que a água se mexesse sozinha dentro do copo. O copo tornou- se um pequeno chafariz onde ao invés de se espalhar a água mantinha-se unida em um tipo de vórtice contínuo.
O coração de Mashira deu uma forte pontada enquanto os seus olhos estavam fixos no copo de água, não conseguia acreditar no que estava vendo: “Meu filho, um legionário? Isso não pode ser. Não, não…” Segurando o pequeno Hounen nos braços e olhando diretamente nos olhos dele, ela disse com voz embargada e lágrimas: “Meu filho, por favor… por favor, não faça mais isso.”
O brilho nos olhos do garotinho se desmanchou em lágrimas: “Não chora mamãe, não chora.” Eles se enlaçaram num forte abraço e choraram juntos. Hounen chorou porque sua mãe estava chorando e Mashira chorou porque sabia a situação com a qual teria de lidar.
Mashira com o menino no colo, sentou-se no sofá e ligou para o marido. Sua voz ao telefone transparecia todo o nervoso e angústia que estava sentindo. O marido tentava acalmá-la: “Calma amor, calma. Eu não consigo entender” o marido pedia que Mashira contasse o ocorrido devagar.
“O nosso filho… ele move as coisas sem tocar nelas, ele consegue fazer coisas flutuarem, ele…”
“Como assim amor? Eu nunca vi isso antes.”
“Hoje, marido. Eu vi isso hoje. Ele é um legionário. Eu não consigo acreditar que isso está acontecendo conosco” o seu rosto ardia de nervoso e as lágrimas continuaram a descer em meio a soluços.
“Entendo. Esposa, você sabe o que precisamos fazer.”
“NÃO! Não! Eu não vou entregar meu filho para eles. Eu não vou.”
O marido começou a sentir calor, com as mãos trêmulas afrouxou o nó da gravata. Ele sabia que se não entregassem o garoto às autoridades de Óregon, eles seriam presos e talvez até resetados.
“Esposa, se acalma. Nós vamos dar um jeito nisso. Fica calma.”
Mashira diminuiu o choro e se acalmou confiante de que o marido resolveria tudo. Eles poderiam fugir para outro estado ou mesmo outro planeta. Poderiam fugir para longe do radar de Oregon. O Lar é onde a família está, não importa o local que vivam. Com esses pensamentos a mãe exausta de preocupação banhou-se com a criança e depois, foram dormir um pouco. Eles precisavam estar descansados para as decisões que seriam tomadas quando o marido chegasse.
O menino dormiu depressa, mas a mãe não conseguia fechar os olhos. Suas palavras eram um sussurro: “A inocência… Meu filho, você nem ao menos sabe a seriedade disso tudo. Melhor que seja assim.” Ela passava a mão direita sobre os cabelos espetados do filho com ternura. Com os olhos marejados ficou assim por horas até que finalmente dormiu.
Mashira acordou com a porta do quarto se abrindo, era o marido com um semblante preocupado e triste. Suavemente ela apalpou a cama e sentiu que o garotinho não estava mais do seu lado. O seu corpo começou a formigar.
“Hounen? Cadê você meu filho? Hounen!”
Desesperada, a mulher jogou os travesseiros para o alto e correu em direção ao marido.
“Marido, cadê o nosso filho?”
Agarrou o marido pelo braço e começou a sacudi-lo com força: “MARIDO! Cadê o Hounen?!”
Ele a abraçou com força: “Amor… não podemos fazer nada. Desculpa, desculpa” e ele também começou a chorar. Mashira se soltou dos seus braços e o empurrou. Com os olhos arregalados indagava: “Você não… Você não entregaria o nosso filho a eles, entregaria? Você entregou?”
“Amor… o que você acha que poderíamos fazer? O que poderíamos fazer? Não podemos fazer nada. Não podemos, não podemos…”
Essas palavras confirmaram o maior medo de Mashira. O seu marido com quem tinha construído uma vida junto, ele a tinha traído. Ele foi capaz de entregar o seu filho para uma organização ditadora. Como ele pôde fazer isso com tanta facilidade? Como?
É comum que o nosso desespero não nos deixe ver a dor do outro. O marido caiu sentado no chão com as mãos no rosto em prantos e profundo pesar. Para quem não conhece Óregon, pode achar esse homem um desnaturado ou covarde, mas apenas quem se depara com uma decisão difícil e dolorosa sabe como custa agir contrário ao que se deseja. Na verdade, esta foi, sem dúvida, a melhor decisão que este pai poderia ter tomado.
Ela correu até a porta da casa. A alguns metros de distância ela viu uma grande nave espacial. Vários de seus vizinhos estavam presentes, observando curiosos, mas como toda boa mãe a primeira pessoa a quem ela viu foi o seu filho que estava sendo levado por um estranho. Então, ela correu aos berros: “HOUNEN! MEU FILHO! NÃOOO!”
O menino olhou para sua mãe em desespero e começou a chorar puxando o estranho pela mão. Pouco antes de Mashira os alcançar, uma soldado agarra a mulher alarmada pelo braço, rasgando as mangas de sua camisola e a segurando firmemente enquanto outros soldados armados observam toda a situação.
O homem estranho queria fazer o reset dentro da nave, em um local mais calmo, porém viu que isso não seria possível. Então gentilmente se abaixou na altura do menino e com voz suave lhe perguntou: “Pequeno, seu nome é Hounen, não é verdade?”
“Sim” o menino respondeu apreensivo e sem desviar os olhos de sua mãe.
“Você quer voltar para a sua mãe?”
Foi quando o menino desmanchou o choro e sorriu olhando nos olhos do homem: “Quero! Eu amo a mamãe”, mas após dizer isso o menino já não parecia estar mais ali. O processo de reset já havia começado, no fundo Mashira gritava pelo filho e berrava ao máximo. O estranho, mesmo incomodado com os gritos, continuou: “Meu jovem, o seu passado já não importa mais. A partir de hoje você é um legionário e terá uma família que te ama e que cuidará de você, não importa o que aconteça. Durma e descanse um pouco. Em breve tudo estará bem.”
Hounen dormiu nos braços do homem que o carregou para dentro da nave enquanto resmungava: “Meu filho, meu filho. Egoísta! Esta criança é o filho da esperança, da ordem e da paz. Não é o seu filho.”
A nave partiu e Mashira se abraçou desalentada. Seu marido a tentou consolar, mas ela o empurrava, não o queria mais. A partir deste dia o seu casamento já não existia e a sua família havia sido destruída por Óregon. O seu objetivo de vida seria recuperar o filho perdido não importando o quanto isso iria custar.
Hounen cresceu e se tornou um excelente legionário. Por ser um jovem muito inteligente, atento e curioso, se tornou um estrategista incrível. Além de possuir a telecinese ele também desenvolveu uma habilidade especial, ele conseguia realizar cálculos matemáticos com muita precisão e rapidez. Isso garantiu a ele o posto de cientista mestre de Óregon.
Sua vida parecia incrível! Mas todas as noites em seus sonhos ele ouvia a voz familiar de uma mulher que desesperadamente gritava: “Hounen! Meu filho! Devolvam o meu filho!”
– Fim do conto Hounen